ANACORASE

Sob os auspícios do sangue dos mártires, a Igreja do Século II experimentava um crescimento semelhante à massa de pães, que quanto mais apanha, mais cresce. Pouca ou quase nenhuma trégua era lhe dada pelos cézares que, embriagados pelo vinho do ódio destilado no inferno, nao se cansavam de tentar reter o poder revolucionador daquela que fora designada "Corpo de Cristo". Assim, a intensa perseguição afastou nossos irmãos à clandestinidade das galerias subterrâneas onde cultuavam a Deus e ali mesmo enterravam seus santos sob os epitáfios gravados nas paredes ecoando a bavura da impoluta Noiva do Cordeiro.
 
No entanto, houve um tempo na história em que a hecatombe pareceu dar vez a um suposto tempo de paz: Ocorreu que por volta do ano 312 o Imperador Constantino declarou o Cristianismo como religião oficial do Império. Para a igreja oprimida era um grande alívio. Trocar as fétidas catatumbas por suntuosas igrejas, não mais temer a coersão do Estado, não mais conter o júbilo travado na garganta. Não mais fazer parte da dieta dos felinos. Adorar a Deus com alta voz, em som retumbante e, melhor que tudo isso, com as bênçãos de Cézar.
 
Os templos ganharam arquitetura barroca. As salas subterrâneas apertadas seriam apenas lembranças de um tempo de opressão que deveria ser apagado da memória individual e coletiva. Ser cristão virou "febre nacional". E ser anti-cristão virou motivo de perseguição. "Pôr os inimigos debaixo dos pés" nunca fez tanto sentido até então. Bruxas queimadas, pagãos perseguidos, infiéis sob suspeita e condenados. Era a hegemonia do Cristianismo de Constantinopla dando um "sabor de mel" ao Velho Mundo. Deus estava, enfim, tripudeando sobre todos os adversários da Igreja. 
 
Mas eis que na contramão da eufórica multidão e longe dos olhos soberbos da imponente cúpula eclesíastica, um pequeníssimo grupo de estranhos rumava à lugares ermos. Ninguém entendia a motivação. Vez por outra, alguém era visto na rota contrária dos grandes centros. Um êxodo ao exílio. Incompreensíveis. Quem eram esses lunáticos que, dizendo-se cristãos, ao invés de vir adorar a Deus nos magníficos templos e praças, agiam como se estivessem se afastando dEle e da santa irmandade, à procura de lugares afastados, indo atrás sabe-se lá do quê?
 
Eles eram os anacoretas. Ou, os retirantes. Gente que, no ápice do culto a Deus, na festa das grandes celebraçoes, no meio dos santos, conseguiam enxergar tudo e todos, menos a presença do Deus que amavam. Havia alguma coisa no ar que lhes causava certa inquietação. Parecia que na grandes solenidades, em meio ás multidões extasiadas com a religião prepoderante, faltava principalmente o Dono da Festa. E quase ninguém percebia isso!
 
E para esses santos solitários não havia dúvida. A solução era retirar-se. Sair do meio de tanto barulho, tanta agitação, tanta riqueza, tanta opressão religiosa para, no ermo, ficarem quietinhos, imperceptíveis, mas ainda assim, poderem ouvir o sussuro do Santo Deus, que nos tempos das catatumbas eles ouviam tão prazeirosamente de perto, como que falando ao pé do ouvido qual a Sua soberana vontade.
 
E era lá, longe dos holofotes, longe da barulheira, longe da ostentação, longe dos mega-templos que o inusitado realmente acontecia: o Altíssimo descia com majestosa e jubilante miríade a bailar pela adoração dos seus santos, quase em extinção, mas ainda dispostos a não se deixar levar pela suposta vida de vitória e triunfo social, e sim, desejosos de negar tudo para ser como cheiro suave às narinas do Santíssimo.
 
Antecipando a conclusão, escrevo que chegamos ao século XXI imponentes e aos milhares, mas vez por outra é necessário desligarmos todos os botões, encarar o contra-fluxo, ignorar todas as vitrines, cancelar o passeio a todas as megalopes e rumar para lugares ermos, ao lugar onde Deus deseja falar em tom balbuciante, às vezes no silêncio das pausas, em notas que passam despercebidas se não houver a mais completa atenção, mas que chegam completamente audíveis ao nosso coração e que nos diz: "eu estou aqui, amado anacoreta".
 
Escrito por Gilson Hermsdorff

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