NÃO PRECISAMOS MAIS DE DEUS

Às vezes me lembro do tempo em que eu era criança na igreja do bairro. Cada reunião era pretexto pra mais um ajuntamento na pequena igrejinha no final da ladeira. Culto de oração na segunda-feira não era lotado, mas tinha um bom número de irmãos. E eu, pelo menos até o momento em que não adormecia ajoelhado, ouvia um murmúrio aqui e outro ali. Homens barbados chorando, mulheres numa ladainha estranha pra mim, outros orando num ritmo frenético incansável. E a oração não parava por aí. Era comum chegar na casa desses crentes e vê-los ocupado orando. Eu mesmo, quantas vezes não acordei de madrugada e me assustei com as mãos de minha saudosa vó sobre mim orando pra Deus me guardar (que bom que ela orou por mim!)... Na terça tinha outro culto, geralmente nos lares; quarta mais um culto público, o preferido dos bêbados. É que o butequinho próximo à igrejinha fechava mais cedo, e na falta de melhor opção, pra lá iam os cambaleantes sentar na última cadeira verde. Impressionante como quase todos pediam o hino 15 da harpa (meu saudoso pai era um desses!).

   
    Quinta outro culto. Sexta era doutrina. Sábado era o dia que se deixava o bairro para cultuar na matriz. Minha vó caprichava no vestido de retalhos. E domingo era o grande dia: A igreja enchia ainda mais. Um grupo misto de homens e mulheres chegavam mais cedo para cantarem juntos um hino no meio do culto. Era o grupo geral. Minha vó fazia parte. Eu vivia me perguntando quem era a tal tribo lá do coração que ela cantava: "a tribo lá do coração, em Cristo alívio encontrarás..." E o tal do fogo que assava sardinha: "...o fogo que Moisés via, o fogo que assa sardinha..." E na hora do apelo o pastor, ofegante porém convicto, convidava os ouvintes a entregar a vida a Cristo, enquanto o irmãozinho do violão dedilhava o memorável "meu amigo hoje tu tens a escolha, vida ou morte qual vais aceitar..." E quando alguém levantava a mão pra aceitar Jesus, eu já não entendia porque alguns riam, outros choravam e parecia uma festa. Eu mesmo, sentado no banquinho das crianças, às vezes entrava no clima e deixava escapar um "aleluia".



    A vida era sofrida. Ninguém ostentava muita coisa porque todos eram bem pobres. Não tinha celular pra atrapalhar o culto nem tirar a atenção dos jovens. O pastor vinda de outra cidade, de ônibus, não tinha carro. Então a igreja nem precisava de estacionamento. Lembro apenas da velha Brasília do irmão Deusdete. Quando chovia era um suplício à parte. Algumas irmãs vinham com um sapato cansado de guerra, iam no pequeno banheirinho no fundo do quintal da igreja e colocava outro sapato. Quem não tinha outro, cultuava com o sapato cheio de barro mesmo.


    No velho púlpito de madeira ficava uma cestinha verde, onde os irmãos colocavam pedidos de oração. Alguns eram secretos, mas outros o pastor lia no altar. Era gente pedindo um emprego, outro pedindo cura pra alguma enfermidade, outro pedindo libertação pra o marido ébrio. E a oração da intercessão era um fogo só! Cansei de ouvir gente no domingo posterior ir lá na frente testemunhar que a causa no advogado foi resolvida, que o marido conseguiu emprego, que o filho doente sarou (inesquecível o dia que uma irmã vomitou um câncer!). Gente agradecendo pela compra de um terreno, pela salvação do filho. E o resultado eram mais glorias, mais louvores  e é claro, as línguas estranhas, que na minha cabeça eram estranhas mesmo. Nos cultos que eu fazia em casa com meus irmãos e primos às vezes até rolavam algumas. Rs.


    Daí o tempo passou. A igreja saiu do final da ladeira e comprou um terreno maior. Virou um grande templo. Veio muito mais gente. Os tempos mudaram, as crianças cresceram, eu cresci. A economia melhorou, a moeda se estabilizou, a inflação diminuiu. Todo mundo comprou TV (que deixou de ser pecado). As mulheres ficaram mais bonitas (é que antes não era muito corriqueiro pintar e cortar cabelos, nem usar esmaltes vermelhos ou batons de cores berrantes). As casas ficaram mais amplas, o governo abaixou os impostos dos carros e todo mundo comprou o seu. Os jovens conseguiram entrar na faculdade (alguns mediante Bolsa, como eu), a Internet chegou. Todo mundo adquiriu TV à cabo, celular chique, sofá mais amplo e confortável. O salário melhorou, sobrou um dinheiro pro cinema e pro shopping, e em contrapartida...

    ...Diminuiu a adesão no culto de oração, que foi extinto por falta de audiência (os de domingo virou o Fashion Sunday Gospel). É que as novelas de apelo popular ficaram mais interessantes. E assistir corrida de carros e futebol em tv HD é coisa do céu! Minguou a frequência na EBD, afinal o Malafaia e companhia passaram a ser professores bem mais interessantes e menos cansativos. Enfim, passamos a depender menos de Deus. Explico: não precisamos mais de pedir cura porque agora temos convênio médico. Não precisamos pedir porta de emprego porque temos emprego estável e bem remunerado. Não precisamos orar pela salvação de ninguém porque todo mundo tá salvo e quem não está não é problema nosso. Não precisamos orar por causas difíceis porque agora temos condições de pagar um bom advogado. E não precisamos cultuar sempre, porque podemos assistir cultos pela TV ou Internet. Fora que nos falta tempo, já que todo feriado ou final de semana prolongado a gente tem compromisso na praia, na casa dos familiares. (Aff, servir a Deus não significa a ir a igreja com frequência. Pra quê tanto fanatismo, não é mesmo? Legalistas hipócritas!)


    Ah, também não precisamos mais buscar o batismo com o Espírito Santo nem os Seus dons. Já temos o Espírito e somos moderados. Já temos o curso de teologia e está de bom tamanho. Cantamos afinados, (aprendemos a cantar com o pessoal dos pelourinhos americanos! Salve Kirk Franklin!!), pregamos cheios de vernáculo uma mensagem emocionante! Não precisamos chorar mais porque isso demonstraria fraqueza. Nossa igreja tem muito ouro e prata (´só não podemos dizer ao coxo "levanta-te e anda". Mas isso é detalhe) E hoje em dia seria deselegante demais um homenzarrão ou uma jovem bem vestida sair falando em línguas estranhas ou pulando no meio de um culto de domingo! Pra sintetizar: Recebemos tanto de Deus que não precisamos mais dEle!

    Ah, que saudade da igrejinha do final da ladeira!

"VINDE, E TORNEMOS AO SENHOR, PORQUE ELE DESPEDAÇOU, E NOS SARARÁ; FERIU, E NOS ATARÁ A FERIDA" (Oséias 6.1).


Tenham todos um excelente Natal e um 2014 com muito mais dependência de Deus!


No mais Sublime (e insubstituível Ágape)

Por: Gilson Hermsdorff

Comentários

  1. A Paz do Senhor,

    Palavras lindas sobrepondo uma situação crítica do momento que vivemos. Realmente ser evangélico virou um Status, posição e não necessariamente significa compromisso com Deus. Que Deus possa nos acordar em um avivamento em que sejamos realmente prudentes e sinceros para com ele.

    Que Deus abençoe a todos.
    Anderson Dias

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