TRÊS HONRAS E UMA VERGONHA

Damasco, 850a.C.
A região do Mediterrâneo já naquele tempo era um barril de pólvora. Sob os auspícios do Tigre, Eufrates, Jordão e Nilo, os povos nômades da península asíatica começavam a delinear um espaço fixo, ainda que alargando cada vez mais suas fronteiras ao fio da espada. Dagon, Astarote, Iris, Osiris e uma falange de outros deuses completavam o amálgama religioso, diretamente atrelado ao afã pela conquista de terras.

Nessa miscelânia, o intrépido Reino da Síria também conquistava sua hegemonia na sede de expansão. Nada era mais vexatório para os seus prisioneiros do que ver suas mulheres grávidas terem a barriga aberta, o filho tirado, e um gato vivo ser colocado no lugar da criança. Homens empalados. Olhos arrancados das vísceras, unhas tiradas inteiras dos dedos.

Desta vez o comandante do exército sírio saiu do anonimato. Sua coragem e heroísmo ganhou destaque na pena do escriba hebreu. Um gentio, inimigo em potencial, foi feito digno de uma biografia no pergaminho dos adversários do sul, porque essa coragem, talvez pudesse servir de exemplo a qualquer nativo hebreu.

E assim em II Reis ele descreve a respeito de Naamã, no capítulo 5, versículo 1, da seguinte forma: " Naamã, capitão do exército do rei da Síria, era um grande homem diante do seu SENHOR, e de muito respeito; porque por ele o SENHOR dera livramento aos sírios; e era este homem herói valoroso, porém leproso"

Ops! Tarde demais para corrigir o lapso da menção! Teria sido acidental a antítese do texto em negrito? E se a conjunção adversativa do fim da frase, que poderia soar tão pejorativa aos leitores, pudesse ser reeditada? Seria ético, depois de chamar o nobre homem de grande, respeitável e herói valoroso, mencionar a sua deficiência?

Mas o escriba foi inexorável. Apesar de tudo, Naamã era leproso! E essa condição parece que soou como neutralizadora de todas as virtudes mencionadas. Como se uma única anomalia destruísse qualquer virtude.

Naamã era um homem reverenciado por muitos. Sua farda era cheia de insígnias. Muitas condecorações enfeitavam a imponente farda. Da boina às botas não faltavam divisas. Os transeuntes acenavam-lhe em sinal de honra, os subalternos reclinavam a cabeça. Os inimigos respeitavam. Os compatriotas orgulhavam-se de tão nobre cavalheiro.

Mas na solidão de sua casa o quadro era diferente. Cada vez que entrava no seu quarto, um espírito de depressão já o esperava, projetando-se aterrorizador na imagem através do espelho. Era a hora do valente tirar sua armadura. Ele deveria pôr as divisas no criado-mudo, as botas sob a cama, a farda pendurada num cabide e aí então a vergonha era o único estigma cravado na sua essência. 

A lepra estava lá. Escondida sob a pele, deformando todo o seu corpo. Ninguém via, ninguém notava, já que o glamour das suas virtudes não dava espaço para que as deficiências ficassem evidentes. E mesmo que alguém percebesse, ninguém seria louco de ridicularizar tão gande homem! Seus feitos eram heróicos demais e não seria de bom tom falar contra a sua anomalia.  

Mas Naamã era triste. Talvez nos momentos mais agonizantes da sua lepra, teve vontade de trocar os aplausos, o abraço dos amigos, o sorriso das cranças e o louvor dos subalternos pela pureza de sua pele. Talvez em alguns momentos desejasse nao ser nada e nem ninguém, desejasse nao ser reconhecido como herói, respeitável e corajoso, em troca de poder se olhar no espelho e não ter vergonha da imagem refletida!

Mas havia uma cura! Havia um Deus em Israel, que veio parar na sua casa na bagagem sentimental de uma repugnante serviçal. Uma menina que desde os dias mais tenros já experimentava o labor da escravidão. Não tinha nome, não tinha família, nao tinha o respeito nem a popularidade do seu senhor, mas não conseguia ficar quieta quando se era pra falar que conhecia um Deus em Israel que poderia devolver a identidade do seu senhor.
 
A cura seria simples: o ritual consistia em sete mergulhos, não nas límpidas águas do Abana e do Farpar, mas nas águas enlameadas do Jordão. E o mais importante não era o mergulhar. Era, sim, o fato de, à vista de todos, tirar as divisas, jogar a máscara de herói e de "bonzinho" e reconhecer-se que tinha uma deficência com a qual não conseguia e nem deveria mais viver. O requisito inicial para a cura seria colocar-se do avesso!

Depois do sétimo mergulho, talvez a água do rio misturou-se à água das lágrimas de emoção. Como era bom olhar pra si e peceber que sua pele agora estava limpa. Que agora nao teria mais vergonha de estar com sua esposa no quarto. Que não teria mais motivo pra sentir aquele aperto no peito toda vez que recebesse um elogio de um amigo que o chamasse de "homem perfeito". Sua deficiência tinha ficado nas águas e desembocaria no mar do esquecimento.


*     *    *

São Paulo, 2012dC.
Quantos de nós também somos aplaudidos. Quantos nos admiram pela garra no trabalho, pela dedicação com que fazemos as coisas, pelo altruísmo com que tratamos os outros. Nao faltam holofotes. Gostamos das honras. Enchemos o peito com o calor do abraço e diante da satisfação causada pelo olhar de amigos que nos dizem "eu queria ser como você". Mas de repente quando eles vão embora e ficamos sozinhos na solidão do nosso quarto, percebemos um monstro sair de dentro do guarda-roupa. Nossa mente vira cenário de filme de terror e nossos fantasmas se projetam à nossa volta. E o que vemos na imagem do espelho é o ornamento de um sepulcro caiado. Nossas divisas, conquistas, elogios, parecem que perdem razão de ser e não valem mais pra nada, pois as nossas mazelas espirituais gritam mais alto por um socorro.
Todavia, à nossa volta existe a voz de uma "pequena escrava" a qual precisamos começar a ouvir, dizendo-nos para que simplesmente tiremos nossas fantasias de grande, de herói e caiamos de joelhos aos pés daquEle que criou o Jordão. Que não nos condena pela nossa deficiênciamas quer curar-nos somente ao cheiro das águas.  

Quando os monstros das nossas deficiências assaltarem nossa mente, então devemos nos lembrar do binômio sangue-água que verteu na cruz, convidando-nos à justficação e à pureza pela Palavra de Cristo Jesus.
A lepra do pecado não pode nos separar, nos contaminar, nos insensibilizar e nem nos matar.  

Antes que uma maldita metástase a faça alastrar-se por nosso corpo, debaixo das nossas aparências, então só nos resta pedir pra sermos limposainda que isso custe os aplausos, as honras, os abraços e os elogios. Porque aquilo que somos grita tão alto que ninguém consegue nos ouvir. 

Nao sejamos iludidos pelas lisonjas com que os outros massageiam o nosso ego. Lembremo-nos que Deus não vê como vê o homem. Ele olha direto pra o coração!
E ele deseja nos limpar.

"Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei". (Mt 11.29)

No mais Sublime Agape,

Gilson Hermsdorff



Comentários

  1. Gilson,

    A paz do Senhor!!!

    Mais um texto maravilhoso.

    Uma mensagem que nos dá confiança, e nos traz a memória o fato de servirmos ao Deus que tem todo poder em suas mãos, para fazer tudo que lhe apraz.

    Abraços,

    Andeilson Gomes

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